Engenheiro paulista apaixonado por hots transforma um antigo sonho em realidade: restaurar sua pick up Ford F1 1951 na garagem de sua própria casa
Matéria originalmente publicada em Rod & Custom n°13. Complete a sua coleção: http://www.lojastreetcustoms.com.br/revistas.html
Por Claudia Cardinale
Fotos: Marcello Garcia

“Do it your self”: a velha máxima da língua inglesa parece estar se difundindo entre os rodders brasileiros, tal como sempre ocorreu nos EUA. Prova disso é a história do nosso leitor Gerival Santana Pereira, de São Paulo, SP. Gel, como é mais conhecido, é dono de uma reluzente pick-up Ford F1 1951, cuja reconstrução consumiu mais de uma década: “Estou montando este carro à onze anos e cerca de 90% dele, com exceção da pintura e da funilaria, foi eu mesmo quem fiz na garagem da minha casa”.
Gel sempre sonhou com o dia em que pudesse pilotar sua própria raridade e, em outubro de 1997, o engenheiro decidiu que era hora de colocar sua idéia em prática. Saiu, então, a procura do “carro perfeito”. Por uma questão de gosto pessoal, o veículo em questão tinha que ser uma pick up da marca Ford, preferencialmente uma F-1 ou, em última instância, uma F100 “redonda”.
Sua primeira investida não deu certo. O dono da primeira F-1 encontrada, outro admirador do utilitário, apesar de muito simpático e atencioso, se recusou a vender a pick-up. “E olha que eu insisti bastante, mas infelizmente não foi desta vez”. Porém, Gel não se deixou abater. Determinado, continuou insistindo em sua busca e, apenas uma semana depois, quando passava pelas imediações da Via Anchieta, em São Paulo, SP, finalmente viu a possibilidade de colocar as mãos em seu “sonho de consumo”.
“O ex-proprietário estava colocando a placa de vende-se no veículo e o único pensamento que me passou pela cabeça, na ocasião, era sintetizado pela frase ‘Essa é minha’”. Não foi difícil fechar negócio com o antigo dono, mesmo porque o aspecto da combalida F1 era desanimador. Gel, entretanto, como todo rodder que se preze, nem se importou com isso. Ele conseguia enxergar muito além da pintura desgastada, das peças que faltavam, dos bancos carcomidos e dos diversos focos de ferrugem, defeitos que, com toda certeza, desanimariam uma “pessoa normal”. Em outras palavras, no lugar de uma verdadeira sucata sobre rodas, ele já delineava a máquina que surgiria a seguir. Mas o desafio era dos grandes!
No intuito de fazer uma surpresa para seus pais, Gel resolveu levar o veículo para a garagem de um amigo e, neste local, deu inicio a transformação. “Consegui manter tudo em segredo durante três anos”. A partir de então nasceu não apenas um projeto automotivo, mas sim a história do “Restaurados em Garagem” na vida de Gel, um grupo de amigos que monta seus carros em casa, sem pressa para terminar e pelo simples prazer de dizer “fui eu mesmo quem fiz”.
Assim, após realizar alguns melhoramentos, Gel finalmente levou a F1 para casa e a mostrou a seus familiares, os quais de imediato também se apaixonaram pelo projeto. Feito isso, deu andamento a reconstrução, removendo a cabine do chassi, os pára-lamas e o conjunto de motor e câmbio originais. Esta F1 saiu de fábrica com o motor flathead de seis cilindros em linha 226 H1 (ou ainda 1HA) que, com 226 polegadas (como o próprio nome indicava), 3.700 cm3, taxa de compressão de 6.8:1, era alimentado por um carburador de corpo simples e desenvolvia 95 cv (SAE) a 3.300 rpm, com torque máximo de 185 Lbs Ft. a 1.500 rpm.
O 226 foi o primeiro motor Ford americano de seis cilindros em linha. Ele surgiu em 1941 para substituir o pequeno 136 V8 flathead, de 2.200 cm3, utilizado desde 1935 pela Ford France e cujas variações equipariam, futuramente, o Ford Vedette e sua evolução, o Simca Chambord. Curiosamente, na época em que foi lançado, o 226 tinha a mesma potência do Ford 221 V8 flathead e sua defasagem em relação ao Mercury 239 V8 flathead era de apenas 10 cv. Sete anos depois, quando ganhou a denominação H-Series (ou Rouge 226), o seis em linha teve sua taxa de compressão aumentada e ganhou mais 5 cv. Em 1952, entretanto, a Ford o substituiu pelo novo seis cilindros OHV 216 (com válvulas no cabeçote, denominado, na fábrica, como A2, que tinha 215 polegadas, 3.500 cm3 e desenvolvia 101 cv.

Como se vê, o 226, apesar de resistente, não era adequado ao projeto, razão pela qual Gel decidiu substituí-lo pelo 302 V8, das linhas Maverick e Galaxie/LTD/Landau, que, com 4.950 cm3 e válvulas no cabeçote, desenvolve 199 CV (SAE) a 4.600 rpm, com torque máximo de 39,8 mkgf a 2.400 rpm. O cambio original da pick-up, com apenas três marchas, além de estar cansado, também não seria uma boa escolha para trabalhar em conjunto com o 302. Assim, em seu lugar Gel optou por uma caixa Clark de quatro velocidades, original do Maverick V8, com relações de 2,92:1, 2,01:1, 1,41:1 e 1,00:1.
A F1, como se sabe, utilizava suspensão dianteira por eixo rígido e feixes de mola, arranjo inadequado aos desejos do rodder, que queria um utilitário tão veloz quanto confortável. Para não fugir a marca do oval azul, o proprietário decidiu empregar toda a parte frontal do chassi da linha Galaxie/LTD/Landau, fazendo uma estrutura híbrida. Por tal motivo o utilitário passou a contar com um eficaz sistema independente, com braço triangular superior, braço simples inferior, tensores diagonais, molas helicoidais, amortecedores telescópicos de dupla ação e barra estabilizadora.
Se foi possível empregar a parte frontal do chassi do Landau na pick-up, o mesmo não se pode dizer do conjunto traseiro. Afinal, com o fundo da caçamba no lugar, não haveria espaço para as molas helicoidais do full size da Ford. A solução foi manter as longarinas da F1, bem como os feixes de molas semi elípticas, mas trocar o eixo do utilitário pelo do Landau automático, com relação longa de 3,3:11 (contra 3,54:1 do Galaxie mecânico e 3,07:1 do Maverick V8 mecânico).

Este fato, aliado a utilização de rodas de liga leve Binno Stock Car aro 16, calçadas com pneus Pirelli P Zero, na medida 265 x 40, otimizaram a velocidade final em detrimento das arrancadas mais violentas, especialmente devido ao tamanho da banda de rodagem em contato com o solo. Isso é fácil de se compreender caso tomemos por base o Landau 1976, equipado com pneus diagonais (com tala de 5 polegadas) 7,7S 15 (ou os opcionais 8,25 S 15), muito diferentes, portanto, daqueles escolhidos por Gel.
O sistema de freios também é do Landau, com discos e pinças Girling Varga nas rodas dianteiras. Nas rodas traseiras, para manter a mesma furação, também foram empregados discos de Landau, mas com pinças de Opala. A caixa de direção é do Ford full size, mas com assistência hidráulica da F1000. Além disso, as tubulações de escapamento foram totalmente refeitas, a começar pelos coletores 8x2, completados por tubos de aço inox com abafadores duplos e ponteiras chanfradas.
Posteriormente o 302 teve seu coletor de admissão original, de ferro fundido, substituído por outro de alumínio, da marca Edelbrock, tipo 289, modelo 21212. Isso permitiu trocar o velho carburador Motorcraft bijet (que, a esta altura, já substituiu algum DFV 446) pelo atual Quadrijet Edelbrock Weber/Magneti Marelli, modelo 1405, de 650 cfm com corpo polido, que trabalha em conjunto com um filtro de ar Summit SUM-G3009. O distribuidor original, também Motorcraft, deu lugar a um MSD 8598, mesma marca da bobina e do módulo de ignição.
Além de ser totalmente restaurada (existiam muitos pontos de ferrugem), a cabine da F1 também passou por algumas alterações, caso dos pára lamas dianteiros, alargados em cerca de quatro polegadas. O pára-choque dianteiro ainda é o original, mas o traseiro foi substituído por outro mais moderno, especialmente desenvolvido para o utilitário. Completando tais mudanças, os estribos foram embutidos, dando um visual “clean” para a F1.
Localizar uma caçamba para a pick-up, que veio sem este item, foi um problema de difícil solução. “Naquela época era muito complicado encontrar uma caçamba em bom estado, passível de ser utilizada em um projeto como esse e, na ânsia de dar continuidade a reconstrução, cheguei a comprar uma muito estragada, apenas pelo fato de ser original, mas não foi possível utilizá-la”, explica. Assim, a mesma também teve de ser confeccionada pela equipe do Hot de Garagem, com ótimos resultados.
O assoalho da caçamba foi confeccionado em jatobá, madeira de alta qualidade cujo emprego é bem diversificado, sendo usada tanto em dormentes quanto em móveis de alto luxo. O jatobá é moderadamente fácil de trabalhar, podendo ser aplainado e parafusado, aceitando, sem problemas, pintura e lustre. No caso da F1, inclusive, o assoalho recebeu 5 demãos de verniz. “Esta parte do projeto exigiu o auxílio de alguns amigos marceneiros, os quais me deram as dicas sobre qual material utilizar. Afinal, um projeto como esse exige muito tempo e dinheiro, sendo que eu não estava disposto a desperdiçá-los em vão”.
Quando Gel comprou o utilitário, ele era verde metálico. O proprietário decidiu, então, repintar a F1 com a mesma cor, mas de outro tom. Chegou a comprar 2/4 de tinta pensado que esta tinha a correta nuance, mas a impressão do catálogo, deficiente, o enganou. Por sorte, antes de começar o serviço, resolveu experimentar a tonalidade em uma peça pequena e só então descobriu que o resultado estava muito distante do que ele esperava. Diante disso, Gel passou a pesquisar mais sobre o assunto e descobriu que a tonalidade desejada, o Verde Arinos, só havia saído no Chevrolet Corsa 2002. Daí, com a tinta correta em mãos, o carro ganhou nova aparência, tudo graças ao serviço realizado pela Aldy Car Alderi, localizada em São Paulo, SP.
O esforço para conferir um ar mais moderno a pick-up (para o qual colaborou a nova cor) não prejudicou a beleza de seu estilo clássico, intensificado com a compra de faróis importados VTO, com lentes de desenho especial. Espelhos retrovisores e frisos externos, entre outros detalhes, são novos, bem como as maçanetas das portas, muito embora estas tenham acionamento elétrico, por controle remoto, tal como nos carros modernos.
Se por fora a pick up se apresenta repleta de cuidados, por dentro a história não é diferente. O banco original, apesar do desgaste decorrente dos anos (e décadas), ainda tinha a estrutura em bom estado. Assim, foi totalmente customizado, ficando mais baixo e estreito, além de ter “ganho” descança braços central e capa de couro cinza, com o apelido do dono bordado na cor azul. O assoalho foi revestido com carpete residencial na tonalidade cinza. Para tanto Gel contou com os serviços dos experientes profissionais da tapeçaria Muniz, outra empresa de São Paulo, SP
Depois de restaurado o painel, ainda ostenta o instrumento quádruplo com medidor do nível de gasolina, voltímetro, manômetro do óleo e termômetro. Também se faz presente o velocímetro, com hodômetro parcial, graduado até 140 km/h. Insatisfeito, o proprietário resolveu instalar, na coluna de direção (originária do Landau), um moderno termômetro. O conta giros Autometer, fixado no painel, completou o conjunto.

O novo volante da F1 (um Walrod com três raios de alumínio, original do Maverick GT 1977/79) foi polido, tendo o aro revestido com o mesmo tipo de couro cinza utilizado no banco da pick up. Seu botão de buzina, personalizado, também é coberto por couro cinza e conta com o apelido de Gerival bordado no centro. As manoplas do câmbio e as pedaleiras, confeccionadas em aço inox, foram feitas pelo próprio Gel.
No intuito de proporcionar um pouco mais de descontração durante os passeios, o veículo recebeu uma pequena aparelhagem de som, composta por dois alto falantes da Pioneer de 6” cada, um subwoofer de 12” e dois módulos de potência, um com saída para os falantes e outro para os subs. Esses equipamentos são comandados por um CD player Pioneer, modelo DEH3880MP, localizado dentro do porta luvas do utilitário.
Em outubro de 2008, Gel realizou sua primeira grande viagem com o veículo, para participar do X Encontro Nacional de Pick ups e Carros Antigos, realizado em Águas de São Pedro, SP. O resultado? A F1 do leitor foi premiada como sendo uma das dez melhores pick ups modificadas do evento. Dai em diante as aparições do endiabrado utilitário tornaram-se uma constante, sendo que a grande “prova de fogo” ocorreu no começo do mês de agosto quando Gel participou do 1º Rod & Custom Road Tour.
Destemida, a pick up percorreu cerca de 830 km, com destino ao 2º Encontro Brasil Curitiba Roadsters, sem apresentar nenhum problema de ordem mecânica ou elétrica. Paradas estratégicas para os reabastecimentos de praxe foram suficientes para aumentar ainda mais o orgulho do proprietário que, no futuro, ainda pretende fazer um coletor dimensionado em inox e empregar faróis de xenon em sua F1. E, se após tomar conhecimento de toda essa história, o leitor ainda pensa que Gel sossegou, engana-se: No final desta entrevista ele deixou escapar que já está planejando um novo projeto, ou seja, um Maverick 1978 que, com toda certeza, irá ser tão chamativo quanto esta incrível F1.
DVD American Muscle Cars

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